texto - Mário Gióia

Estilhaços poéticos de uma projeção regular

“Minha própria construção em Pearblossom Highway me sugeriu como esse sentido de proximidade a tudo e ao mesmo tempo de profundidade poderia ser alcançado. Pontos de vista múltiplos criam um espaço bem maior do que pode ser alcançado por um único. Nossos corpos talvez aceitem um ponto de vista central, mas nossa imaginação movimenta-se rente a tudo, exceto ao horizonte remoto, que tem de estar perto do alto do quadro.”1
Simultaneidade, movimento, fragmentação. A análise de David Hockney a respeito de uma de suas mais importantes obras serve para abordar a múltipla obra de Helen Faganello, que faz ambiciosas incursões por instalação, pintura, desenho, fotografia e objeto, entre outras linguagens.
O artista britânico tem em Pearblossom Highway uma síntese da sua potente poética, que não se restringe às grandes dimensões de suas peças e que sinaliza de maneira tão pungente o espírito de nossa época _fluida, multifacetada e de hipercirculação.
Faganello tem uma produção em consonância com a de Hockney no sentido da criação de uma poética inquieta, que não se contenta com a veiculação via um único suporte, e sim enfatiza o entrecruzamento de linguagens. E, apesar de também trabalhar em escalas mais intimistas, ambiciona capturar o olhar do observador e dirigi-lo a obras plasticamente sedutoras e intrigantes, potencializando-as por meio de um jogo entre o plano e o tridimensional.
As intervenções da artista em espaços já existentes são exemplares desse caráter audaz. Trabalho sem título, realizado na Bienal de Santos, em 2006, parece querer trazer o Oceano Atlântico para o espaço expositivo do Centro de Cultura Patrícia Galvão, com seus 3,50 m x 12 m. Do mesmo ano, Vontade de Mar, até em seu título, também guarda a mesma pretensão, só que destinada ao Museu de Arte de Ribeirão Preto. Cachoeira, feita dois anos depois para o mesmo museu, desfaz por paredes, pisos e corredores as formas “liquefeitas” de um antigo candelabro presente no palacete inaugurado em 1908. Sem Título com Guaimbé, exibida no Paço das Artes em 2010, cria um vigoroso espaço virtual no intrincado espaço expositivo da instituição paulistana. E as pinturas da série O Lustre Vermelho, de 2007, também almejam estar no espaço, abraçar o entorno, integrar-se ao redor.
Algumas interferências de Faganello são mais silenciosas. Uma pintura mesclada à impressão sobre MDF, de 2006, instalada no mobiliário da extinta galeria Oeste, situava-se pouco perceptível em meio ao fluxo de funcionários, artistas, colecionadores e público em geral que frequentava o espaço em Pinheiros. A instalação feita especialmente para o centro de artes Carpe Diem, em Lisboa, no ano de 2009, cria ambientes cheios de cor e elementos orgânicos, por meio de um mix de fotografia, pintura e colagem, que subvertem as regulares dependências da edificação pombalina. Os espaços “impossíveis” ou utópicos são dispostos sobre a superfície amadeirada de mesas, em precário equilíbrio, reforçando o cunho projetual de exibição do trabalho.
Já a recente série Invasões, de 2011, se apropria de fotografias de fachadas de residências algo ecléticas, algo provincianas, que remetem a outros tempos e são registradas por Faganello em variados momentos. A artista utiliza, então, as próprias raízes de uma planta cujas formas rizomáticas foram descartadas por sua mãe sem pensar e, a seguir, escaneia a imagem fotográfica e o elemento vegetal, acrescidos de intervenções em grafite e guache. O que anteriormente era estorvo e memória de existência frágil torna-se um amálgama de enérgico procedimento visual. Faganello, assim, caminha em hilo inexplorado e quer mais o “entre”, não o fim. “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou qualquer coisa de intermédio:/ Pilar da ponte de tédio/ Que vai de mim para o Outro.”2

1. HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto. São Paulo, Cosac Naify, 2002, p. 94
2. SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poesias. Difel, 1983.

Mario Gioia

Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2010, de Incompletudes (galeria Virgilio) e Mediações (galeria Motor), além de ter feito acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista hispano-portuguesa Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.